top of page
Buscar
Foto do escritorsitenuesde

Poucos direitos e subordinação velada: uma nova categoria de trabalho?

Atualizado: 13 de mar.



Por Thalita Sarlo


Um assunto relevante que virou notícia esta semana é que o Governo Lula enviou um Projeto de Lei para votação no Congresso Nacional que reconhece os trabalhadores como "trabalhadores autônomos por plataforma". A escolha de enquadrar os trabalhadores nessa nomenclatura já soa um pouco confusa. Desde a eleição, Lula falou abertamente sobre a necessidade de reconhecer que esses trabalhadores devem ser regulamentados e ter direitos. O Ministro do Trabalho Luiz Marinho também deixou claro o interesse na regulamentação, pró-trabalhadores, e ainda provocou a grande empresa que opera no Brasil: "Se quiser sair do Brasil, o problema é só da Uber", demonstrando uma posição política muito clara. No primeiro ano de mandato, então, foi montado um Grupo de Trabalho tripartite com representantes dos trabalhadores, das empresas e do governo federal, culminando no Projeto de Lei anunciado nesta semana, no dia 4 de março.


Na prática, o formato que está sendo proposto ao Congresso guarda semelhanças com a decisão no Reino Unido e com a do estado da Califórnia nos Estados Unidos, que concedeu alguns direitos aos trabalhadores sem considerá-los empregados das empresas. No Reino Unido, os motoristas foram reconhecidos como "parassubordinados", uma categoria intermediária entre autônomo e subordinado, com alguns direitos trabalhistas. Nessa decisão, a Suprema Corte do Reino Unido reconheceu aspectos importantes da relação de trabalho, como, por exemplo, o fato de as empresas definirem o preço do serviço, imporem os termos de contrato e controlarem o trabalhador e o modo como ocorre a prestação do serviço. Já na Califórnia, os trabalhadores foram definidos como "independent contractors" com alguns direitos trabalhistas. A proposta brasileira, segundo o professor de Direito Rodrigo Carelli, é ainda piorada se comparada com a decisão da Califórnia: é um projeto "nem, nem", ou seja, nem autônomo, nem empregado.


Outro ponto interessante de contraste com a legislação do Reino Unido é que a Proposta de Lei brasileira considera como hora trabalhada apenas o período entre a aceitação de uma viagem e o seu término, e não o período em que o trabalhador fica disponível no aplicativo. No caso do Reino Unido, isso não ocorre.


Partindo do princípio de que o Grupo de Trabalho tripartite ouviu todas as partes, do ponto de vista do jogo democrático, a construção da PL seguiu passos democráticos importantes e chegou a um denominador comum. Entretanto, do ponto de vista do governo, é uma proposta conservadora e pouco corajosa. Vai contra o próprio discurso trabalhista do governo e entra em conflito com o conteúdo de decisões de regulamentação por outros países do mundo. Acadêmicos estudiosos do tema demonstraram, ao longo desta semana, decepção com o conteúdo da proposta, que é, além de tudo, cheia de contradições (seriam essas típicas do lulismo?).


Nesse jogo de interesses, as empresas de plataformas digitais representadas pela Amobitec anunciaram ter gostado do resultado da proposta de lei. E por quê? A PL garante que esse trabalhador não é empregado, e, portanto, não deve ter acesso a todos os direitos, assegura uma remuneração mínima que não é prejuízo para as empresas e ainda salienta a "intermediação" das plataformas, e não a subordinação.


Ao dizer que um trabalhador é autônomo, mesmo que: 1) ele gere lucro para uma plataforma que nada mais é do que uma grande empresa de capital internacional; 2) que controla os trabalhadores por meio de subordinação algorítmica; 3) que decide sobre os próprios termos e os modifica conforme a flutuação do mercado, o governo está fortalecendo o modelo de uberização. Vários especialistas no assunto alertam para o fato de que esse Projeto de Lei abrirá precedentes para disseminar esse modelo de uberização para outras atividades.


Para evitar cair nas chamadas "ilusões da conjuntura", conforme Fabrício Maciel coloca, é importante lembrar que o neoliberalismo atua como uma espécie de "nó de forca", por meio de normas e instituições, restringindo consideravelmente o espaço para mudanças nas políticas públicas, como apontado por Pierre Dardot e Christian Laval. Obviamente, há uma pressão do capital para evitar a concretização de políticas públicas protetivas “demais”. Essa pressão pode se manifestar de várias maneiras, inclusive de forma ideológica, levando a sociedade a acreditar que o desemprego e a incerteza que tantos brasileiros enfrentam podem ser resolvidos com empreendedorismo e individualismo, com “cada um por si”, embora, na prática, muitos trabalhem subordinados a empresas de capital internacional que não possuem compromisso algum com a sociedade brasileira. Dito isso, seria ingênuo pensar que o Brasil poderia ignorar esse novo modelo de trabalho imposto pelas empresas que utilizam as novas tecnologias digitais e enquadrar esses trabalhadores na tradicional CLT. Era de se esperar que uma nova categoria de trabalhadores surgisse em meio ao contexto global.


Essa pressão mencionada, não nos exime, entretanto, de criticar a postura do governo de comemorar o texto da PL como se fosse um ganho para os trabalhadores. “Algum direito é melhor que nenhum”, “alguma regulamentação é melhor que nenhuma”, poderíamos dizer, mas seria uma perspectiva já derrotada, pouco corajosa, pouco criativa e resignada para enfrentar essa fase de transformação social no mundo do trabalho. Não é a tecnologia a novidade apenas, presidente, mas a imposição desse modelo desregulado e flexível, de jornadas extenuantes, com pouco ou nenhum direito garantido.


Não entrarei em muitos detalhes sobre o fato de os próprios motoristas de aplicativo rejeitarem o modelo CLT, aspectos esses que considero também ideológicos. Concordo com Dardot e Laval quando afirmam que o neoliberalismo não se resume a um conjunto de regras e instituições, mas também produz certos modos de vida e subjetividades. É fundamental para que esse modelo uberizado funcione que os trabalhadores de plataformas se tornem "empresas de si mesmos", responsáveis pelo seu próprio sucesso e fracasso.


De forma ainda mais profunda, podemos lamentar o que está sendo estabelecido no Brasil, com seu já histórico de informalidade e precariedade como estruturantes: a subordinação ao capital internacional, reforçando o seu papel na divisão internacional do trabalho como país periférico. O Brasil poderia ser destaque e referência para outros países do mundo na decisão de regulamentar trabalhadores por aplicativo; espera-se isso de um líder historicamente ligado aos sindicatos e do Partido dos Trabalhadores. Não faltam estudos no Brasil que detalhem o que é a subordinação algorítmica, a uberização e a plataformização do trabalho para justificar o conteúdo da Proposta de Lei.


Infelizmente, não foi esse o caminho escolhido para a PL em questão. Cabe a nós, enquanto comunidade acadêmica, compreender e acompanhar o curso dessas mudanças sociais, criticar no que nos cabe e estar atentos a votação no Congresso e às novas reivindicações dos trabalhadores. Interessante pensar ainda nos motivos pelos quais os entregadores estão excluídos desse Projeto de Lei. E é significativo considerar que, talvez, devido à sua própria situação de ameaça de indignidade, esses trabalhadores lideraram um dos protestos mais relevantes contra o modelo das plataformas digitais.


Para alguns especialistas em Direito do Trabalho, esse modelo de "contratação" de trabalho remonta às condições do século XIX. Dessa forma, estabelece-se o que Fabrício Maciel chama de "capitalismo indigno" que separa aqueles que têm direito à proteção social daqueles que não têm. Essa separação pode gerar ressentimento típico de classe, sendo um terreno fértil para as ideias da extrema direita. Todavia, esse é um assunto para outro momento.

50 visualizações0 comentário

コメント


bottom of page